Ontem, ao explicitar os perigos que envolvem os discursos "moderados", no que tange aos direitos humanos, asseverei, de forma meramente pontual, acerca dos métodos que determinadas religiões estão engendrando para, em um futuro não muito distante, implementar integralmente o seu projeto de poder no Brasil: transformarmos em uma república xiita cristã (ou "ditassanta", para os mais íntimos).
Hoje, irei discorrer brevemente sobre a hipocrisia que permeia as ações dos fundamentalistas religiosos, desnudando os perigos que tal abordagem distorcida dos ensinamentos cristãos trazem ao cotidiano democrático e ao arcabouço das liberdades públicas asseguradas pela Carta Política de 1988.
De início, cabe um importantíssimo alerta: não sou avesso à liberdade religiosa. Ao contrário, como constitucionalista que sou, respeito veementemente a liberdade de crença (que, por óbvio, também abarca o direito de não aderir a crença alguma) e a inviolabilidade dos respectivos cultos (desde que não promovam, em seu bojo, atos atentatórios à dignidade da pessoa humana e à incolumidade física dos indivíduos).
Porém, é preciso compreender que as instituições religiosas não estão imunes a críticas e que as mesmas não se confundem com o elemento divino, isto é, religião não é a materialização de Deus. Se a concepção clássica de Deus nos remete a um ente ultra-humano, dotado de poder descomunal responsável pela arquitetura daquilo que conhecemos como universo, as religiões são verdadeiros núcleos humanos de nomogênese ético-moral, forjando, sob a égide da ideia de pecado e de eternidade, o caráter cogente de sua pregação.
E como esta elaboração cogente é nota característica da humanidade, certamente tal atividade legiferante extraoficial (que, em outros tempos, possuía a força legislativa que hoje conferimos às atividades do Parlamento democraticamente eleito) carrega em sua seara os vícios e as imperfeições de qualquer outra atividade desenvolvida pelo elemento humano. A única diferença é que, para os fiéis seguidores das religiões (ao menos, das religiões judaico-cristãs e do Islamismo), tais imperfeições são peremptoriamente ignoradas, na medida em que as mesmas vêm chanceladas pelo pesado e transcendental selo da fé.
Quando tais normas servem tão-somente para nortear a profissão de fé e a experiência pessoal de um grupo de indivíduos, ainda que tal grupo seja numeroso, não há que se tecer análises mais preocupadas acerca deste fenômeno. Todavia, quando começamos a ver púlpitos sagrados convertidos em palanques eleitorais e o dinheiro do dízimo, fruto da boa-fé dos que querem contribuir com obras ecumênicas, transformado em dinheiro sujo do "tráfico internacional da bênção", financiando "lobbies" eleitorais com o intuito de se transformar a Constituição da República em uma espécie de norma sagrada cristã legiferada pelo Congresso Nacional, não podemos permanecer inertes diante deste flagrante atentado à democracia.
Isto sem falar na "farra santa televisiva", em que pastores e padres se utilizam da falta de fiscalização e de regulamentação desta concessão pública e compram espaços milionários em emissoras sempre decadentes para divulgar suas convicções e, por consequência, amealhar um rebanho ainda maior de fiéis, sempre dispostos a "colaborar" com as obras e com a melhoria do padrão de vida de determinados líderes, que, após a liberação de tal "orgia religiosa", estão vivendo cada vez melhor, com direito a helicópteros particulares e a carros de luxo estacionados nos pátios das Igrejas.
E no tocante aos direitos humanos? Bem, nesse jaez, a ingerência e a indecência dos religiosos se torna ainda mais desnudada. Agora mesmo, no ápice da discussão dos direitos da população LGBT brasileira, estamos acompanhando o cinismo e a hipocrisia de certos religiosos fundamentalistas disfarçados de deputados e senadores, que querem, a qualquer custo, impedir o avanço do tratamento estatal dispensado aos homossexuais, num flagrante desrespeito aos princípios e normas constitucionais mais básicos, tendo como cortina de fumaça as normas morais religiosas.
Alegam tais fundamentalistas neocristãos que direitos como união estável e casamento civil não poderiam ser reconhecidos aos gays, sob pena de se abolir o "tradicional conceito de família e os valores cristãos milenares". Ora, ao que me consta, no tocante aos valores religiosos, não existe valor mais milenar do que a hipocrisia. Atacam a homossexualidade por considerá-la um pecado. Porém, não demonstram o mesmo vigor quando o assunto é divórcio, por exemplo. Sabemos que, de acordo com os ensinamentos cristãos, divórcio é considerado um grave pecado (“Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem” - Mateus 19:6). Entretanto, não tenho visto movimentos da denominada Bancada Evangélica na Cãmara dos Deputados com o intuito de se revogar a possibilidade de se por fim ao vínculo matrimonial. Estariam eles criando uma exceção e permitindo que o Estado ataque "o tradicional conceito cristão de família"?
Além disso, sabemos que a mulher ocupa, no bojo da pregação cristã, um papel notadamente submisso ao homem. Tal assertiva é corroborada pelos dizeres do Apóstolo Paulo, quando determina que "as vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja." (1 Cor. 14:34-35). De igual modo, o referido Apóstolo também é rigoroso quando pondera à mulher cristã que "nem use de autoridade sobre o marido" (1 Tim. 2:12).
Diante de tais colocações de Paulo, por que os parlamentares evangélicos não criam um movimento para se estabelecer uma nova Assembleia Constituinte com o escopo de se revogar a igualdade entre o homem e a mulher, posto que tal postulado não pode ser mudado através de emenda constitucional (art. 5º, I c/c art. 60, §4º, IV, da CRFB/88)?
Então, compreendemos uma dura realidade: quando convém aos líderes e às religiões, permitem-se exceções às diretrizes cristãs, verdadeiras Emendas Bíblicas implicitas, que permitem o ajuste dos "milenares valores religiosos" às gritantes e insuperáveis necessidades da vida contemporânea. Porém, quando tais necessidades (como a dos homossexuais) afrontam os preconceitos e as frustrações de um determinado grupo, os mesmos "valores milenares", tão modificados hoje em dia pela práxis cristã, são invocados como dogmas indeléveis e de aplicação compulsória a todos os membros da sociedade, ainda que tal sociedade seja composta por pessoas que não admitem tais dogmas ou que, ao menos, não creem mais em sua exigibilidade. Quando o assunto é preconceito, vale até se esquecer do áureo ensinamento do próprio Cristo: Não julgueis, pois, para não serdes julgados; porque com o juízo que julgardes os outros, sereis julgados; e com a medida com que medirdes, vos medirão também a vós. (Mateus, VII: 1-2).
Como vimos, caros amigos, a manipulação que fazem de normas religiosas para fins político-ideológicos nada tem de novo. Cabe ao Estado e à Sociedade Civil coibir que tais práticas tomem de assalto o Ordenamento Constitucional e nos reduza a uma republiqueta teocrática anacrônica e violenta. E cabe também aos religiosos conscientes realizar uma espécie de Reforma Contemporânea nas religiões cristãs para afastar dela um de seus vícios mais notórios: a hipocrisia, que, de tão virulenta, descamba para a indecência social.
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